A garota atravessou a porta e não
se deu conta de que ela não estava aberta. A sua frente, um longo corredor.
Nele não havia portas e era impossível enxergar seu fim. Nas paredes laterais, várias
telas. Retratavam deferentes maneiras e em diferentes estilos, diversos
momentos da vida de Clarice.
Logo no começo do corredor,
rabiscos quase que infantis traziam seu nascimento e muitos momentos de seus
primeiros anos de vida. Ela observou encantada um dos quadros, que trazia uma
imagem de um bebê mamando no seio da mãe. No mesmo instante, uma sensação
pacífica a envolveu; um calor gostoso de uma lembrança a muito esquecida.
Clarice continuou a caminhar, passando
por muitas outras telas. Cada uma delas trazia lembranças e sensações
diferentes. Como aquela vez, retratada em aquarela, em que ela estava pronta
para o aniversário de uma amiga da escola, com o vestido rendado parecendo um
vestido de princesa, e resolveu brincar com um barquinho de papel na beirada da
piscina de sua casa.
Chegou atrasada ao aniversário e
não foi com o vestido rendado. Ao tentar pegar o barquinho que havia se
afastado da margem, caiu na piscina e ficou ensopada. Olhando agora para o
quadro, achou aquilo engraçado e esboçou um sorriso. Mas no dia, ficou
emburrada e quase não foi à festa.
Um pouco mais à frente, outra
tela trazia em um estilo surrealista sua primeira regra. Foi no vestiário da
escola, após a educação física. Ela lembrava de ter ficado assustada, mesmo
depois das conversas que tivera com a mãe. As colegas riram dela, mas ela não
saiu por aí destruindo tudo com a mente como naquele filme daquela garota esquisita
e com poderes mentais. Esboçou outro sorriso.
Em tons de rosa e no estilo impressionista
do pintor francês Monet, pode rever e sentir novamente a sensação de seu
primeiro beijo. Foi com o garoto mais cobiçado da classe pelas meninas, em uma
viagem para uma feira de livros organizada pela escola. Atrás do estande
daquela editora que foi uma das responsáveis por sua paixão por leitura. Ela só
não se recorda o nome da série de livros, só lembra que era algum tipo de
inseto.
Conforme ela continuou a
caminhar, o corredor foi escurecendo aos poucos. Finalmente o quadro que
representava o momento de maior tristeza da vida de Clarice. Parecendo uma famosa
pintura de Munch, a tela trazia o acidente de carro que ceifou a vida dos pais
dela. O quadro seguinte, retratava o grito desesperado de Clarice ao receber a
notícia.
Então Clarice se viu
repentinamente flutuando. E percebeu que estava em seu quarto, na casa da
família que a acolhia temporariamente, já que a garota não tinha mais nenhum parente
vivo. Ela viu a si mesma, deitada na cama.
Seu olhar estava fixo nos grandes
números amarelos, distorcidos pelo copo d’água que ela havia deixado no criado
mudo. Era meia noite. Além do copo, alguns comprimidos espalhados.
O lençol cor de rosa da Betty Boop
que cobria Clarice dos pés à cintura tinha agora detalhes em vermelho. Estes
detalhes começavam nos cortes que ela havia feito há alguns minutos nos dois
pulsos, com a gilete que ainda segurava em sua mão esquerda.
Clarice voltou ao corpo, sentindo
as batidas cada vez mais fracas de seu coração. Respirando muito devagar, ainda
podia ver que através do copo d’água, o relógio marcava meia noite e um.
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