quarta-feira, 30 de março de 2016

Meia noite num copo d'água

(Geralmente coloco comentários ao final do texto, mas achei que este tem uma temática um pouco pesada e depressiva. E só para que ninguém ache que estou deprimido após ler: meu estado de espírito não podia estar melhor. É só um texto!)


A garota atravessou a porta e não se deu conta de que ela não estava aberta. A sua frente, um longo corredor. Nele não havia portas e era impossível enxergar seu fim. Nas paredes laterais, várias telas. Retratavam deferentes maneiras e em diferentes estilos, diversos momentos da vida de Clarice.
Logo no começo do corredor, rabiscos quase que infantis traziam seu nascimento e muitos momentos de seus primeiros anos de vida. Ela observou encantada um dos quadros, que trazia uma imagem de um bebê mamando no seio da mãe. No mesmo instante, uma sensação pacífica a envolveu; um calor gostoso de uma lembrança a muito esquecida.
Clarice continuou a caminhar, passando por muitas outras telas. Cada uma delas trazia lembranças e sensações diferentes. Como aquela vez, retratada em aquarela, em que ela estava pronta para o aniversário de uma amiga da escola, com o vestido rendado parecendo um vestido de princesa, e resolveu brincar com um barquinho de papel na beirada da piscina de sua casa.
Chegou atrasada ao aniversário e não foi com o vestido rendado. Ao tentar pegar o barquinho que havia se afastado da margem, caiu na piscina e ficou ensopada. Olhando agora para o quadro, achou aquilo engraçado e esboçou um sorriso. Mas no dia, ficou emburrada e quase não foi à festa.
Um pouco mais à frente, outra tela trazia em um estilo surrealista sua primeira regra. Foi no vestiário da escola, após a educação física. Ela lembrava de ter ficado assustada, mesmo depois das conversas que tivera com a mãe. As colegas riram dela, mas ela não saiu por aí destruindo tudo com a mente como naquele filme daquela garota esquisita e com poderes mentais. Esboçou outro sorriso.
Em tons de rosa e no estilo impressionista do pintor francês Monet, pode rever e sentir novamente a sensação de seu primeiro beijo. Foi com o garoto mais cobiçado da classe pelas meninas, em uma viagem para uma feira de livros organizada pela escola. Atrás do estande daquela editora que foi uma das responsáveis por sua paixão por leitura. Ela só não se recorda o nome da série de livros, só lembra que era algum tipo de inseto.
Conforme ela continuou a caminhar, o corredor foi escurecendo aos poucos. Finalmente o quadro que representava o momento de maior tristeza da vida de Clarice. Parecendo uma famosa pintura de Munch, a tela trazia o acidente de carro que ceifou a vida dos pais dela. O quadro seguinte, retratava o grito desesperado de Clarice ao receber a notícia.
Então Clarice se viu repentinamente flutuando. E percebeu que estava em seu quarto, na casa da família que a acolhia temporariamente, já que a garota não tinha mais nenhum parente vivo. Ela viu a si mesma, deitada na cama.

Seu olhar estava fixo nos grandes números amarelos, distorcidos pelo copo d’água que ela havia deixado no criado mudo. Era meia noite. Além do copo, alguns comprimidos espalhados.
O lençol cor de rosa da Betty Boop que cobria Clarice dos pés à cintura tinha agora detalhes em vermelho. Estes detalhes começavam nos cortes que ela havia feito há alguns minutos nos dois pulsos, com a gilete que ainda segurava em sua mão esquerda.
Clarice voltou ao corpo, sentindo as batidas cada vez mais fracas de seu coração. Respirando muito devagar, ainda podia ver que através do copo d’água, o relógio marcava meia noite e um.

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