quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Chapéus

Vitinho adorava chapéus. Tinha um de cada cor. De bonés a gorros de lã. Sempre que via um chapéu diferente, não hesitava e comprava. Em sua casa, tinha dois quartos cheios de chapéus.

Chapéu de cowboy, estilo Indiana Jones, Panamá, boinas e quepes de polícia. Crocodilo Dundee, chapéu de palha, sombreros. Tinha Fedoras, Cartolas, Bowlers e Homburgs. Chapéu Coco,Trilby, Boater e Porky Pie. Era louco por todos estes chapéus e a explicação para isso vai parecer absurda!
Era domingo, dia 2 de agosto de 1959. Ao lado do pai, Vitinho sentia a garoa no rosto sardento de menino. Quem não estava lá, não viu. E nunca vai ver, pois não há registro do momento mágico.
Homero foi o primeiro, Clóvis o segundo. Julinho veio com tudo, afobado e foi o terceiro. Então veio Mão de Onça, o goleiro. Levou o quarto chapéu.
Pelé tocou de cabeça e entrou junto com a bola no gol do Juventus.  Foi aplaudido em pé pelo público presente na Rua Javari, até mesmo pela torcida adversária. Isso aos 18 anos.
Foi aí, segundo o próprio Pelé, que nasceu o gesto imortal do soco no ar. E também a paixão de Vitinho por chapéus!

 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

O grande salvador!


- Contemplem o grande Salvador! – gritou a pregadora para a multidão no planeta Beta Zeta 14 da constelação de Alfa Numericum, planeta muito, mas muito distante da Terra, do outro lado do espaço sideral.

Ela ergueu o objeto e então o brilho dos quatro sóis que iluminavam o planeta foi refletido, fazendo com que os olhares dos Betazetacatorzenses fossem imediatamente direcionados ao chão. O poder do Salvador era tamanho, que todos olhavam para baixo. Era um sinal de submissão, respeito e principalmente admiração pelo responsável por salvar o planeta Beta Zeta 14 da aniquilação, dez anos antes.

***

O imenso cruzador espacial ZigStardustiano aproximou-se de Beta Zeta 14 em um domingo logo pela manhã. A maior parte da população ainda dormia. Outra parte andava pelas ruas, batendo de porta em porta para acordar os que dormiam, sem um motivo aparente. Esses puderam ver e ficaram boquiabertos.

Parecia um eclipse tri-solar, que ocorria apenas a cada mil e duzentos anos em Beta Zeta 14. Eclipses bi-solares eram corriqueiros, mas um tri-solar era raríssimo. Ficaram empolgados por terem a sorte de presenciar um fenômeno ímpar em suas vidas. Porém, logo viram que a sombra que encobria os três sóis ao mesmo tempo não era de nenhuma das 27 luas que orbitavam o planeta. Logo em seguida a essa percepção, a alegre manhã de domingo transformou-se em uma manhã de medo.

Ao perceberem que se tratava de um cruzador espacial Zigstardustiano, os habitantes de Beta Zeta 14 sabiam que não veriam os sóis se pondo nos horizontes (um ao norte, dois ao sul e o último ao leste). A fama dos cruzadores espaciais Zigstardustianos era de aniquiladores sem alma, sem dó e sem nenhuma piedade. Eles nunca perguntavam, apenas atiravam. E era questão apenas de ajustar o cruzador na posição de tiro, para que Beta Zeta 14 chegasse ao seu fim.

A nave demorou cerca de 5 minutos para terminar a manobra. E então o forte laser foi disparado. Sem aviso! Sem dó! Sem piedade! Era o fim de Beta Zeta 14! Não havia nada mais a fazer.

***

A menina BetaZetaCatorzense tinha por volta de 14 anos e observava de joelhos o cruzador disparando seu laser aniquilador. Um lágrima escorreu de seu olho direito, lamentando por toda a vida que ela não mais teria pela frente. Foi quando ela presenciou o milagre.

O raio aniquilador atingiu a tampa de uma lata de lixo. O metal refletiu o raio e explodiu o Cruzador Espacial Zigstardustiano em milhões de pedaços. Beta Zeta 14 estava a salvo e continuaria fazendo parte da galáxia Alfa Numericum, muito distante, do outro lado do espaço sideral.

A menina enxugou a lágrima e abriu um grande sorriso. Levantou-se e caminhou lentamente até o lugar onde estava a lata. Somente a tampa permanecia intacta. A garota então levantou a tampa e bradou aos ventos:

 - Contemplem o grande Salvador!

E assim nasceu a Igreja Interespacial da Sagrada Tampa da Lata de Lixo.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

A caçada


Correu como nunca.
Os galhos passavam arranhando seu rosto e seus braços. O ar quente e a umidade faziam com que ficasse mais difícil respirar. Parecia que o ar era mais denso. Mesmo assim, continuou correndo. Os gritos de todos os seus amigos ainda ecoavam em sua cabeça, misturados ao rosnado dos diversos lobos da matilha. Em meio às árvores que passavam rapidamente, lembranças das imagens horríveis do ataque.
O vermelho viscoso manchou as lonas como se um pintor pós-modernista jogasse litros de tinta em uma tela clara. O cheiro de morte pôde ser sentido quase que imediatamente no ar. As barracas foram atacadas pelo grupo de lobos com uma violência incrível. A voracidade dos animais era tão extrema quanto à fome que sentiam.
Ele conseguiu se defender colocando um dos braços à frente e nocautear um dos predadores com uma pedra que conseguiu pegar do chão. Correu como nunca para a mata fechada. A lua cheia permitiu que enxergasse um pouco melhor o caminho. A adrenalina começou a baixar após longos minutos correndo e ele passou a sentir a dor no braço lacerado. Os dedos da mão estavam dormentes e ele não conseguia movê-los.
Tentou se acalmar uma pouco e pensar com mais clareza. Precisava fazer alguma coisa em relação ao braço. Tirou a camisa e com o auxílio dos dentes rasgou o tecido. Também com a ajuda da boca, amarrou o mais forte que pôde a camisa no braço, pouco acima dos ferimentos. Não era muito, mas já ajudaria a conter o sangramento. Precisava pensar rápido. Durante o ataque, apenas correu desesperadamente, sem pensar para onde e sem saber o quão longe conseguiria chegar antes que dentes afiados rasgassem seu pescoço. Conseguiu escapar, ao menos por enquanto. Mas não podia ficar parado.
Tentou se orientar olhando para o céu, mas era quase impossível. A única noção que tinha era que correra para o lado oposto de onde tinham deixado os carros, visto que a floresta começava mais para dentro do vale onde decidiram acampar, ao lado de um pequeno mas belo riacho. Correu em linha reta - ou o que achou ser linha reta - por cerca de 10 minutos, o que deveria dar uma distância de um quilômetro mata à dentro. Do acampamento até os carros, a caminhada era de cerca de quatro quilômetros na direção leste. Havia ainda a escalada do paredão vertical de cerca de 30 metros. Mais para dentro do vale, apenas floresta e o rio que ficava a uns 25 quilômetros a oeste.
Tinha que se decidir rapidamente entra as duas opções. Um caminho mais curto a leste, ou uma longa caminhada riacho abaixo até encontrar o rio. Ambos se apresentavam como odisseias. Apesar de mais curto, o primeiro caminho tinha uma matilha de cerca de seis ou sete lobos entre ele e a salvação. O mais longo tinha a distância e o tempo, pois o ferimento do braço parecia bastante sério. Mas havia diversas cabanas de caçadores e pescadores ao longo do rio, provavelmente habitadas nesta época do ano. O tempo estava passando e ele não podia se dar ao luxo de esperar. Os lobos poderiam aparecer e emboscá-lo a qualquer momento.
Tomou a decisão quase instantaneamente. O seu sangue gelou nas veias e o arrepio percorreu todo o seu corpo, quando ouviu ao leste o chamado do líder da matilha. O longo uivo anunciava o inicio da caçada.
Voltou a correr como nunca.
 
Continua...